"Eu te busco de todo o coração; não permitas que eu me desvie dos teus mandamentos." (Salmo 119:10)

domingo, 8 de novembro de 2015

Morena

Morena era jovem, dezesseis anos, magrinha, mas carnuda, seios crescendo, sorriso largo, cabelos compridos e castanhos, com pequenas ondas nas pontas, sobrancelhas bem finas, lábios grossos, e apesar de Morena, era branquinha. Pele macia e boa de bronzear, diferente das demais branquinhas não ficava avermelhada, mas com um dourado que realçava os seus olhos, ora verdes, ora acinzentados, perfeitos para quem mora numa cidade de interior: o sol rachando, a terra em alguns cantos ainda vermelha, os rios de tons verdes acompanhando os caminhos, as árvores aqui frondosas ou ali quase mortas, com olhos que não se sabe de que cor são e que podem ora ser da cor da água que acompanha a travessia, da cor do céu ou da cor que quem olhar, quiser.
Morena não tinha grandes aspirações, aos dezesseis anos pensava apenas em terminar o ensino médio e o que quer que aconteça depois seria lucro. Não passava muito tempo pensando nessas coisas, apesar de não levar uma vida relativamente corrida para não ter tempo ou ter medo, simplesmente não pensava. Aos dezesseis anos não se precisa pensar nessas coisas, haverá tanto tempo e pressão para se pensar nelas, que é melhor Morena aproveitar este tempo de ócio e descobertas com coisas bobas e ao mesmo tempo importantes.

Sua rotina consistia em estudos pela manhã - ia e voltava a pé, na volta sempre mudava o caminho para passar na padaria e comprar uma Coca-Cola retornável, daquelas pequenas, para aguentar o calor; durante a tarde assistia uma das reprises de novela com sua vó - dona Teresa, senhorinha agradável e com ar descansado de quem já fez o que tinha que fazer e agora não devia se preocupar com nada e com nada de fato se preocupava; depois da novela fazia alguma de suas tarefas escolares, nunca fazia tudo, achava muito enfadonho, mas não fazia principalmente porque sempre trazia consigo algum daqueles romances de coleções como Sabrina, Júlia e etc., que sua mãe guardava “a sete chaves”, mas nem tão trancado assim; no finzinho da tarde encontrava-se com as amigas e ia até à pracinha, conversavam sobre as coisas da escola, os vestidos que chegaram na casa de dona Magnólia, a sacoleira do bairro, os presentes que talvez ganhariam no final do ano e, claro, os garotos. No interior, e de famílias relativamente humildes, não se havia mais conversas interessantes do que essas, o resto eram fofocas.
Morena era muito bonita e conversava muito bem, e mesmo com estes atributos que já atraem parte dos marmanjos, era tímida e nunca se colocava como algum produto disponível, embora Ana Rita e Isadora sempre trouxessem alguma novidade acerca da admiração de alguns dos meninos por ela, fosse Raul, o filho do padeiro, João Paulo, filho de dona Sebastiana, a costureira do bairro, ou Marcos, o filho de seu Bruno, o motorista da ambulância do hospital mais movimentado da cidade. Morena se perguntava como as pessoas chegavam ao hospital, pois a ambulância só vivia na porta da casa de Marcos e seu Bruno pra cima e pra baixo dando caronas às pessoas, que não estavam doentes.
De todos o que mais causava alguma cócega em Morena era Marcos, talvez por ser inteligente, embora não fosse muito bonito como Raul nem engraçado como João Paulo. Mesmo sendo Morena apenas uma menina e podendo muito bem ter um romance correspondido e pueril com qualquer um desses meninos, todos com os hormônios à flor da pele e os pensamentos longe da cabeça (de cima), nada lhe impulsionava. Ana Rita e Isadora aproveitavam, afinal, quando o alvo principal não é acertado, os meninos costumam atirar para os mais próximos e contentam-se com eles.
Morena não ligava e cultivava um desinteresse e indiferença que a tornavam respeitada na escola e honravam sua mãe. Agora aqui encontramos um paradoxo, pois sim, honravam sua mãe, depois de tantos anos com a honra manchada. Donâna engravidou aos 14 anos de Josué, rapaz que chegara da capital cheio de conversas, todo arrumado, bem mais velho, vivido e com sorriso largo, sorriso que Morena herdara. Ficava à tardinha conversando com as mocinhas na praça - mocinhas como Ana Rita, Isadora e Morena - lá conheceu Ana, hoje, Donâna (dona Ana, donAna, Donâna). Risos, beijos, mãos, pernas... Barriga. Josué permaneceu na cidade até Morena completar dois anos, certo dia, disse que ia à praça (continuava papeando as mocinhas, mas desta vez já alertadas por toda a vizinhança) e nunca mais voltou.
Hoje, o desinteresse por parte de Morena honra sua mãe, ela já passou dos catorze anos e, embora frequentando a mesma praça, continua inteira. Mas este desinteresse de Morena, ora e veja, vinha dos próprios romances que lia escondido da mãe e das possibilidades que eles traziam, que eram muito mais instigadoras e atraentes do que as que poderia ter ali, nos fundos da quadra da escola. Os livros, do contrário que podemos pensar, não eram ingênuos nem castos, contam histórias cheias de reviravoltas, encontros, desencontros e atos quentes. Esses eram os motivos pelos quais a mãe de Morena guardava com tanto carinho estes romances, pois separada e sozinha há muitos anos, eram eles que supriam a falta que havia por conta do abandono do marido. A mãe de Morena lia e relia sua enorme coleção, aqueles papéis amarelados, finos, alguns já rasgando, era ainda o que restava de romance e calor na vida parada de mãe e dona de casa. E o que salvava Morena e honrava a sua mãe cedo desonrada, era ao mesmo tempo o que só colocava palha na fogueira que crescia em plena adolescência de Morena e que aos poucos começava a incendiar cada canto do corpo que ressaltava, esperando para alguém acender. Morena sabia que não era ali que encontraria o que buscava e que, por enquanto, só os livros podiam oferecer.

Por ser uma menina tranquila e por conta de seu temperamento contido e ar indiferente não tinha dificuldades para arrancar suspiros de qualquer olhar masculino mais atento. O seu romance preferido chamava-se “Negócios de Amor” e contava a história de uma moça que não conseguia relacionar-se sério com nenhum rapaz, até conhecer o sócio de seu pai, um homem maduro e atraente que não dava a mínima para ela, mas que a deixava sempre sem jeito quando a encontrava.  Eles acabam se envolvendo, mas a moça descobre que o homem na verdade está apenas usando-a com fins de crescimento dentro da empresa, entretanto, após descoberto o fino homem apercebe-se completamente apaixonado pela moça, que se encontrava destruída emocionalmente, mas pronta a tentar novamente. Por que entre tantos romances Morena preferia este é simples entender: não tinha um final feliz como os outros. Enquanto nos demais o enredo desenrolava-se com certa facilidade e beleza, neste tanto o homem quanto a moça sofrem e se deparam com suas dificuldades, isso instigava Morena que nem sequer o romance fácil e belo tinha vivido. Tal livreto também fazia Morena lembrar da história de sua mãe, seduzida também por um homem bem mais velho e abandonada em seguida. Será que ela estaria disposta a tentar novamente?
Donâna era uma senhora muito atraente, aliás, chamá-la de “senhora” é um exagero. Donâna tinha apenas 30 anos, por isso o “dona” acoplara-se ao seu nome, disfarçando sua condição de jovem mulher já abandonada, sozinha e desiludida. Dela Morena herdara os cabelos e magreza, do pai o sorriso e os olhos. Donâna, depois da humilhação de ter sido abandonada, decidira viver uma vida dedicada à mãe e filha, tornou-se uma excelente mulher do lar, ajudava todos os vizinhos no que podia, era gentil com os donos das mercearias e preocupava-se em oferecer à filha o melhor que poderia. Ganhava a vida cozinhando, fazia doces, bolos, salgados, tortas e o que houvesse de novo. Era bem requisitada, vendia em casa, nas feiras, nos encontros das igrejas, para aniversários, pequenos casamentos do bairro e assim ia... Donâna era tão prestativa, gentil e reservada que rapidamente as pessoas esqueceram do ato principal da peça de sua vida. Pararam de perguntar pelo pai da sua bebezinha, pararam de procurar as características dele nela, não demorou muito para Morena deixar de ser a filha de Ana, aquela, lembra? Aquela que o marido de repente foi embora sem dizer nada e só vivia na praça conversando com aquelas meninas! Menino, ela engravidou novinha, uns catorze anos, parece. Agora Morena era filha de Donâna, a que faz os doces que vendem nas reuniões lá da igreja e aquele beiju maravilhoso lá na feira!
 Morena não deixava de pensar que tanto a mãe quanto ela mesma pudessem ainda viver um amor como estes dos livros. Mas não ousava comentar nada com ela, apesar da relativa pouca diferença de idade entre as duas, a relação mãe e filha pautava-se numa hierarquia que era respeitada e obedecida. Certos assuntos não eram conversados entre as duas, inclusive este. Donâna achava Morena muito ingênua e, embora achasse que talvez fosse bom alertá-la sobre os perigos da vida, preferia deixar “intacta” esta inocência, não aflorar. Oras, se ela não pensa nisso, melhor não acordar este monstro. Mas Morena pensava.
Tanto pensava, tanto pensava, que não pensava mais em muita coisa. Depois que já havia lido todos os itens da coleção de sua mãe, encontrou-se num estado de desolamento profundo. Se antes não fazia todas as suas tarefas porque parava para ler, agora não fazia coisa nenhuma porque não haveria nada para fazer depois. Passava então a tarde inteira deitada no sofá ao lado de dona Teresa, que, despreocupada, não se importava nem perguntava coisa alguma, nem sequer notara a inanição da neta.
Ana Rita e Isadora passavam em sua casa para chamá-la: “Morena, vamos ali na padaria e depois a gente dá uma volta na praça”. Para quê? Aqui tem um monte de doces na geladeira. “Morena, o Raul perguntou por você, disse que tinha uma coisa pra te dar. Se você não vier com a gente eu vou ficar, viu?”, pois pode ficar, eu vou deitar, agradece ele por qualquer coisa. Deixou de ir à praça. Saber das fofocas e das conversas insossas não lhe consolavam, não havia mais romance para comparar as situações e sempre chegar à conclusão de quanto o que rolava por ali era pura bobagem.
Donâna notara a falta de coragem da filha. Nos primeiros dias imaginou que talvez fosse o período menstrual, Morena sempre ficava assim quando estava prestes destes dias chegarem. Nos poucos dias, que realmente logo chegaram, ainda relevou, afinal, é um incômodo realmente. Mas depois começou a estranhar… O que esperava que durasse apenas alguns dias e tivesse causa biológica natural não passou. Insistiu numa anemia. Realmente, Morena andava pálida. Quase não comendo… Morena, procure comer, você não está se alimentando, por isso anda toda morta viva aí dentro de casa. Não sai desse sofá!
A alimentação também não era o problema, inclusive, de tanto não sair e comer os quitutes maternos engordou um pouco. Morena estava grávida? Não pode ser. Comendo deste jeito, engordando, com uma preguiça do tamanho do mundo, só pode ser barriga! Donâna enlouqueceu, perguntou à dona Teresa se ela notara algo de diferente na filha ao que dona Teresa responde: “Te acalma, Ana, essa menina só está é apaixonada”.
Apaixonada pelos livros. Que já lidos, tocados, rasgados, consumados… Partiam, sem deixar novas vivências, sem oferecer novidades. Não adianta relê-los. Reler um livro não é a mesma coisa que viver um amor.

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