"Eu te busco de todo o coração; não permitas que eu me desvie dos teus mandamentos." (Salmo 119:10)

quinta-feira, 22 de junho de 2017

A pele dela estava toda marcada

Pode ler ouvindo isso aqui.




A pele dela estava toda marcada. Não sabia como tratar aquilo. Não sabia sequer falar com ela sobre isso. Acho que nem é preciso. E, agora, com ela ao meu lado, dormindo tão tranquila, eu me pego pensando em como tocar no assunto, ou, melhor dizendo, como este assunto me tocou.

A noite tinha sido diferente para mim, cada vez que eu percorria mais um centímetro do corpo dela, mais uma marca eu encontrava. Nem estava mais concentrado no que de fato eu tanto queria. Esperei semanas por isso, conversei um livro inteiro ansiando por isso, e agora acho que esse esforço todo eu nem deveria ter feito. Se tivesse sido mais direto, talvez não sentisse tão culpado agora, ou tão usado.


Eu só me preocupava com cada sinal, com cada mancha que eu achava. Se eu não estivesse com tantas expectativas, certamente não me importaria com a quantidade de drama que eu vi ali, tatuada na pele dela, na vida dela.


Enquanto eu estava por cima, ela sorria, e eu percebia que para ela as marcas eram naturais. Para mim, no entanto, só havia espanto, me perguntando como ela conseguia se enxergar todos os dias sem perceber o quanto estava deformada e machucada. Vez ou outra ela parava e me olhava, séria, como se estivesse lendo meus pensamentos. Se eu não soubesse que era tão perturbada, até acreditaria que estivesse mesmo. Ou talvez realmente estivesse lendo, justamente por ser perturbada.


Não foi ruim, ela é incrível, é natural para ela, é simples, ela simplesmente está ali, sem amarras. Mas eu queria tirar as marcas, que agora pareciam que eram parte de mim também. Eu estava me sentindo sujo. Como se eu estivesse correndo o risco de pegar, sei lá o que fosse que ela tivesse. Talvez fosse contagioso. Talvez daqui a pouco, quando ela levantar, eu também estarei marcado.


Talvez quando ela não ligar, como já fizeram com ela, uma mancha apareça no meu braço. Talvez, quando questionarem o porquê de eu ter ficado com a amiga dela, como já fizeram com ela, uma marca apareça no meu peito. Talvez, quando ela disser que eu não sou pra ela, como já fizeram com ela, um sinal apareça no meu rosto. Talvez, quando ela me comparar com o outro amigo, como fizeram com ela, uma mancha vermelha apareça na minha perna. Talvez, quando eu me questionar o quanto valho para ela, como ela fez tantas e tantas vezes, uma marca sutil surja entre meus dedos. Talvez, quando ela só aparecer para mim quando estiver sozinha e com vontade, como já apareceram tantas vezes para ela, uma dor profunda no peito eu sinta também.


Talvez, quando ela achar que eu me apaixonarei por ela e eu então sentir a necessidade de não me aproximar, como já fizeram com ela, uma dor repentina no lado esquerdo do corpo eu sinta. Talvez, quando ela tiver que sustentar a fama que tem e eu tiver que aguentar ter sido só mais um na lista, como já fizeram com ela, eu ganhe uma tatuagem na minha mão. Talvez, quando eu fizer todo o drama do mundo e perceber que ela nem se importa, eu até morra.


Ela está toda marcada. E eu não sei lidar com isso, embora seja a única coisa que toma conta dos meus pensamentos agora. É muita bagagem.


Eu deixo ela se levantar, fico a observar como ela se veste… Quantas mãos já tocaram essa pele? Quantos dispenderam sua energia deixando-a marcada assim? Tão educada ela se despede com um beijo no meu rosto, é carinhosa, é carente, mas é também tão corriqueira, tão efusiva, tão dispersa quanto minha opinião sobre ela.


Digo que vou ligar e que a gente vai sair qualquer dia desses, mas, pensando bem, melhor eu não ligar, melhor eu não me aproximar tanto, são tantas marcas para eu ter que sentir no meu corpo também, são tantos sinais e pensamentos para eu ter que carregar na minha memória. Melhor… melhor mesmo não sei, mas, mais fácil é ser mais um que marca também. Eu quero gente limpa. E as marcas dela são como tatuagens, contam a história de um passado que eu não quero ler. Eu ainda sou um analfabeto emocional, e ela é um livro inteiro de emoções.
Texto originalmente publicado no meu Medium.

Um comentário:

Anônimo disse...

Amén irmã kkk