"Eu te busco de todo o coração; não permitas que eu me desvie dos teus mandamentos." (Salmo 119:10)

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Ela é um jazz

O ambiente era escuro, tinham algumas luzes avermelhadas, azuladas, num tom baixo, se é que você me entende. Havia um vestígio de fumaça de cigarro me recebendo no ambiente, certamente soprado pela mulher de vestido branco que acabara de passar por mim, saindo daquele bar escuro e frio. Olhei para trás levemente, só vi sua silhueta despedindo-se dos olhares que a seguiam.
Sentei sozinho e um jazz ao fundo tocava. Não gosto de jazz. Não entendo as batidas, embora tão bem acertadas, sempre tão incertas. Tal como ela que neste instante, descobrindo os meus pensamentos, acaba de entrar. Uma blusa preta de gola alta, coque no cabelo, sem batom, mas com uns brincos gigantes, uma saia de cintura alta e rodada, florida, e uma sapatilha verde que só combinava mesmo com a cor dos seus olhos e as pequenas folhinhas que adornavam as florzinhas que estampavam suas pernas. Tatuagem no antebraço, algo que nunca consegui ler.
Ela tem um jeito estabanado de chegar, sorri para mim e, por causa disso, sem olhar por onde anda, bate com sua coxa na cadeira ao lado, pede desculpas aos amigos da mesa, que nem ligam para ela. Sorrindo ainda, meio envergonhada, ela caminha em minha direção. É delicada, igual o piano que toca agora.

Senta na mesa e começa a se ajeitar, ou a se desajeitar. Desfaz o coque que eu estava achando tão bonito… O cabelo de tamanho médio, negro, liso, cai por cima de seus ombros, ela passa as mãos nele e o deixa livre, mas obediente. Tira a bolsa do ombro e pendura na cadeira vazia ao nosso lado, mas não sem antes tirar o espelho de dentro e dar uma olhada, sorrindo ao seu reflexo; pergunta como estou, o que eu estava fazendo, se já pedi algo. Sempre inicia as conversas, mesmo que chegue sempre atrasada. Eu nunca preciso me dar a este trabalho. Ela é o baixo, mantém o ritmo, não quer se faz notar, embora seja notável, não como Bardot chegando ao Brasil, claro, mas notável. Não fala dela, sempre pergunta. É tão altruísta.
Alguém que a conhece chega e a abraça, eles contam uma piada só deles, ela ri alto, muito alto. Chama atenção e se deixa levar, levanta, abraça o amigo, o seu cabelo despenteia, por causa dos corpos juntos abraçados sua saia levemente sobe e ela não se importa, me apresenta, sou seu amigo, estudamos juntos na faculdade de teatro, agora sou professor, ela diz, enquanto continua tentando a vida nos palcos, ela informa. Está em alguma companhia? Ele pergunta. Não, apenas estudando alguns textos, participando de algumas gravações de amigos; ela não sabia, mas estão procurando atrizes para formar o elenco da nova peça da sua companhia, não estaria interessada em ir fazer o teste? Mas é claro! Ela ri alto de novo, pega sua bolsa, o celular, fica nervosa, erra umas duas vezes a sua senha, anota o número do amigo de longa data e ele também pega o seu contato, vai ficar aguardando sua ligação, não teria outra coisa que a deixasse mais feliz. Ele precisa ir, dá um beijo em sua testa, ela continua linda.
Eu sei que ele não ligará e que ela ficará por dias animada com esta pequeníssima cena. Ela é bonita, ele muito mais, se fossem um casal diriam que ele é muito para ela, é um garanhão disfarçado de irmão, ele é como a batuca que cai quando o baterista está tocando. Ela é a própria bateria, por vezes direta, e outras vezes exaltada, como agora nesta cena, e como agora nesta música. Que diabos, odeio o som desses pratos.
Não tenho ciúmes, não pensem assim. Ela é ingênua como o violão nesse jazz, nem passa pela sua cabeça que ele possa ter outro interesse, e ele também não tem em sua mente nenhuma outra ideia mais séria com ela, ela é apenas uma possibilidade, tal como o jazz para o samba, a maioria vai querer o samba. Bem, eu vou sempre querer o samba.
Depois da euforia, ela senta e diz: “Então, o que você tem pra me falar?”
Estamos chegando ao fim da nossa saída que mal começou. Seus lábios sem batom me lembram porque estou ali, tão bonita, tão ingênua, despreparada, sem ambições… Pueril até. Ela é sofisticada, fina, rara, mas exige muito cuidado, muita destreza, e, veja bem, não estou para isso, eu gosto de samba.
– Querida, eu não sei se você sabe, mas eu não gosto de jazz.

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